Paciente legal presa por autocultivo de maconha promete ativismo em Caxias do Sul

Texto por: Andreza Rossini | Arte por: João Diório

Jéssica foi acusada por tráfico de drogas e esta é a primeira vez que é ouvida pela imprensa. Sentença deve sair nos próximos dias

Em 11 de maio aconteceu a audiência da microempresária e paciente legal de maconha, Jéssica Vieira dos Santos (34), moradora do Distrito Vila Oliva, em Caxias do Sul (RS), detida pela Brigada Militar (BM) acusada de tráfico de drogas, em julho de 2020. A prisão aconteceu durante o seu tratamento contra depressão, ansiedade e psoríase. 

“Após a prisão tive o pior cenário das minhas doenças, já que fiquei sem tratamento. Mais de um ano depois voltei a usar a maconha, mas apenas o prensado – que estava acessível – e minha ansiedade piorou, minhas pernas nunca tiveram tantas manchas”, conta.  

A prisão aconteceu no dia 4 de junho de 2020, no mesmo dia em que recebeu a visita dos pais, no sítio da família, depois de quatro meses de distância. Cerca de dez viaturas da BM estiveram no local. “Primeiro, vieram dois policiais civis descaracterizados, falando sobre uma denúncia. Eles encontraram a plantação e me deram voz de prisão. Em nenhum momento neguei qualquer informação, mostrei os medicamentos que produzi, minhas receitas, mas nada adiantou. Reviraram tudo dentro da minha casa, em busca de dinheiro ou mais ‘drogas’, até as malas dos meus pais foram mexidas”.

À noite, estava na delegacia, algemada, esperando a contagem das plantas para ir ao presídio de Caxias do Sul. “Fui informada que teriam 310 pés de maconha e contestei no exato momento. Haviam mais de 150 mudas – que nem a metade sobrevive – e aproximadamente 45 plantas no estado vegetativo e 45 na floração, além de 50 plantas mortas”. A calma e o autocontrole acabaram quando Jéssica chegou ao presídio – depois de 12 horas de apreensão – e permitiu-se desmoronar. “Chorei como não acontecia há anos. Minhas filhas haviam ficado desesperadas e assustadas, pensei em todo o trabalho que havia perdido, minha carreira, meu tratamento, as plantas e a dignidade”. 

No dia seguinte foi expedido o alvará de soltura com a defesa de um advogado. O benefício foi concedido porque não existia nenhum antecedente criminal e Jéssica era responsável por duas crianças. Para entrar com o processo de Habeas Corpus preventivo para o autocultivo, procurou um profissional solidário com a causa, Dr. Evaldo Lopes, advogado antiproibicionista. “O auxílio do advogado foi tudo o que eu precisava para me acalmar e acreditar que, mesmo depois da prisão, eu poderia voltar a produzir a minha própria medicação. Outros especialistas já haviam negado minha causa enquanto eu respondia o processo, mas nós nos concentramos e juntamos provas e hoje tenho meu HC. Voltei a plantar em abril de 2021, sempre com muito apoio do meu marido”, comemora. 

Segundo Lopes, conseguir a autorização da Justiça Federal, enquanto Jéssica respondia por tráfico de drogas, foi um desafio. “Ela tinha muitos laudos médicos e provas de seu tratamento com a Cannabis e, por isso, resolvemos tentar. Muitas informações apresentadas pela polícia, como a contabilização de plantas e laudos, precisaram ser rebatidas. Não existia na casa embalagem para venda ou grande quantidade de maconha [flor] para caracterizar o tráfico, mas tinha receitas médicas. Foi um processo muito complexo, o primeiro dos meus casos em que todas as instituições foram acionadas – Polícia Militar, Civil e Federal e todas se manifestaram contra”, afirmou. 

Apesar de ter autorização do plantio pela Justiça Federal a paciente continua respondendo na Justiça Estadual do Rio Grande do Sul por tráfico de drogas. O advogado considera o caso uma “aberração” judicial. “O juiz federal entendeu que ela não estava traficando e autorizou o plantio”, ressaltou. 

Com planos de montar uma associação canábica na cidade, ainda pequena e com poucas ações nesta área, Jéssica espera a absolvição judicial. “Sou outra pessoa e quero mostrar a todos que maconha é remédio. Sou uma ativista que demorou para ‘sair do armário’ devido a uma sociedade gananciosa e preconceituosa”.

Hoje, Jéssica é autorizada a importar 120 sementes ao ano de bancos oficiais e realizar o plantio conforme sua necessidade de produção de medicamentos. 

Em entrevista, a promotora responsável pelo caso no Ministério Público do Rio Grande do Sul, Vanessa da Silva, afirmou que o HC de Jéssica não interfere no processo por tráfico de drogas. “Está, inclusive na decisão judicial, que um ponto não deve interferir em outro, além disso, a apreensão de plantas foi muito maior do que o autorizado pelo juiz, que prevê 120 sementes, independente de ser planta grande ou muda a cada 12 meses”. 

Na época da prisão o caso foi divulgado por uma série de veículos da imprensa, anunciado como tráfico e “laboratório” de drogas. 

História clínica 

A depressão e a ansiedade começaram a se manifestar em Jéssica aos 17 anos quando o médico responsável a indicou Diazepam, remédio  que trouxe extremos efeitos colaterais. Segundo a ativista, naquele ano ocorreram duas tentativas de suicídio e um internamento em clínica psiquiátrica.  “Tive gastrite em decorrência do tratamento e após a minha alta hospitalar – que aconteceu porque o plano de saúde só cobria 30 dias de internamento – continuei com o uso de medicamentos por mais um mês e precisei abandonar, pois eram muito caros e atrapalhavam meu desenvolvimento profissional”. 

No ano seguinte, Jéssica foi mãe pela primeira vez. “As manchas vermelhas da psoríase começaram a aparecer logo no ano seguinte e continuaram se espalhando por todo o meu corpo”. O ciclo de sintomas parecia não ter fim, já que a ansiedade é uma das causas do surgimento das feridas da psoríase e as manchas e as coceiras trazem a ansiedade.

Início do contato com a Cannabis 

“Em 2012 eu estava em uma depressão muito forte e conversei com o meu marido sobre voltar ao tratamento com os medicamentos. Já não aguentava mais a angústia e a tristeza, não poder me vestir como eu queria ou frequentar lugares como um parque aquático ou praia. As pessoas me olhavam como se eu tivesse uma doença contagiosa. Já não conseguia mais dormir direito ou me alimentar. Foi então que tive meu primeiro contato com a maconha, aos 25 anos. Eu tinha medo, pois, para mim, era droga. Quando vaporizei foi incrível, consegui ter apetite e uma noite completa de sono”. 

Foi apenas três anos depois que Jéssica contou ter acesso a informação de qualidade, que explicava o uso correto da planta de forma medicinal – que não é fumar como um baseado, mas, sim, vaporizar em aparelhos específicos ou consumir como óleo, pomadas e cremes. Na época o custo de um frasco de óleo era de R$ 1 mil – quase todo o salário da paciente que estava em um período de vulnerabilidade social, sendo a única fonte de renda da família de quatro pessoas, recebendo pouco mais de um salário mínimo. 

Dois anos depois resolveu começar o seu plantio, com 20 sementes de prensado (maconha comercial), no terreno do sítio onde morava. Ela ressalta que o início foi muito difícil, perdendo o plantio para pragas, cuidando de plantas macho, que não dão flor e impossibilitam seu uso como medicamento. “Enfim consegui acesso à Internet para aprender sobre como cultivar e realizei uma consulta com médico especialista para tornar o tratamento mais adequado. Nas primeiras cinco plantas que colhi e vaporizei senti uma diferença enorme nas minhas patologias. Em poucas semanas os sintomas da psoríase começaram a amenizar de forma efetiva, pela primeira vez, em cinco anos”. 

Pouco tempo depois a microempresária conseguiu fazer sua primeira extração de óleo de cannabis. “A pomada que fiz com a planta e o óleo de coco teve um resultado excelente. Em dois dias de uso, as manchas nas pernas restantes estavam secando e chegaram a sumir completamente. A mudança foi incrível. Minhas filhas, de 10 e 12 anos, me viram de shorts pela primeira vez”. 

Fotos disponibilizadas pelo acervo pessoal da Jéssica