COMO ESTAMOS APÓS A NOVA RESOLUÇÃO CFM nº 2.324/22?

Texto por: Murilo Barioni

No estudo, observaremos a Resolução CFM nº 2.113/2014 que foi revogada pela nova Resolução CFM nº 2.324/2022, bem como a análise jurídica, comparando a Constituição Federal/88, a Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/1990, a RDC Anvisa nº 327/2019 e a RDC Anvisa nº 660/2022.

A polêmica Resolução CFM nº 2.324/2022 expressou novamente o mesmo entendimento anterior da Resolução CFM nº 2.113/2014 (revogada), propiciando o obscurantismo e o retrocesso quanto ao tema do tratamento terapêutico com a maconha no Brasil. 

Quando comparamos às duas Resoluções CFM, notamos que não houve inovação ao que tange às diversas patologias que podem ser tratadas com a cânabis, seja por terapia adjacente ou como medicamento principal para a cura de enfermidades. Em vez de progredirmos e debatermos sobre o tema, como já vem sendo feito pela classe médica no Brasil, o Conselho Federal de Medicina ignorou os vastos artigos científicos já publicados em esfera global sobre os benefícios da maconha para continuar com o mesmo entendimento retrogrado. 

Após oito anos de vigência da Resolução CFM nº 2.113/2014, o Conselho Federal de Medicina publica uma nova norma com os mesmos preceitos discriminatórios para até mesmo o grupo exclusivo de pessoas pacientes para o tratamento da epilepsia na infância ou adolescência refratárias com a planta. A limitação temporal da norma está exclusiva na infância ou adolescência do paciente? O constrangimento que causou o CFM ao publicar a nova Resolução avilta a classe médica que vem estudando, propondo e realizando um trabalho zeloso e cuidadoso perante seus pacientes com as terapias holísticas e benefícios da maconha para curar os indivíduos.  

O normativo apresenta seis artigos, aos quais fixam restrições à comunidade médica para receitarem o tratamento com a cânabis aos pacientes medicinais, ao qual seu texto discorre sobre o uso exclusivo à patologia da epilepsia na infância ou adolescência refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa e a vedação da prescrição da Cannabis in natura

Em seu artigo 3º, ao que exprime a vedação explicita aos médicos, a prescrição de Cannabis para indicação terapêutica diversa da prevista da Resolução, salvo em estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP e também para a ministração de palestras e cursos sobre o uso da maconha e/ou produtos derivados da planta fora do ambiente cientifico, bem como fazer divulgação publicitária. 

Ao debruçar sobre a RDC Anvisa nº 327/2019 que dispõe sobre os procedimentos da  concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais e a RDC Anvisa nº 660/2022 que define os critérios e os procedimentos para a importação de produto derivado da maconha, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, com a finalidade de tratamento de saúde dos indivíduos, entendemos que a Anvisa já propõe progressos normativos quanto ao tema. 

A Anvisa é uma autarquia sob regime especial, órgão de Estado que tem sua função de fiscalizar e regulamentar a vigilância sanitária de produtos. Por outro lado o CFM é uma autarquia que possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica. Sua competência atualmente exerce um papel político muito importante na sociedade, atuando na defesa da saúde da população e dos interesses da classe médica. 

Ao aferirmos a finalidade e o interesse social das autarquias mencionadas, devemos observar sob a ótica da Constituição Federal que discorre sobre direitos e garantias fundamentais aos cidadãos brasileiros, ao qual o direito à saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Ainda assim, a CFRB/88 dispõe que são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. 

A análise não somente percorre sobre a própria Lei Maior, mas também às leis infraconstitucionais. O estudo ressalta a Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/90 que dispõe sobre a saúde como um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, sendo o dever do Estado garantir a saúde na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

As normatizações das leis decorrem dos princípios constitucionais que fluem do assistencialismo e proteção à vida. Visualizando o cenário atual, o Conselho Federal de Medicina rompe com esse preceito fundamental contido nas normas, excluindo e vedando às práticas médicas autônomas quanto à prescrição dos produtos e terapias com a maconha. Além disso, a proibição da ministração de palestras e divulgação dos benefícios da terapia com a cânabis afronta diretamente o direito à educação, liberdade de informação e vedação à censura, sendo que a finalidade dos profissionais da classe médica é de proporem novos saberes terapêuticos e os avanços para a cura de enfermidades.

Quando examinamos às duas Resoluções CFM, mencionadas no estudo, que discorrem normas sobre o uso da cânabis e a terapia medicinal, percebemos o obscurantismo e o retrocesso, pois as vedações restringem o pleno acesso da sociedade aos benefícios do tratamento com a maconha. 

O CFM dizer que não existem estudos médicos que se declinam aos benefícios e progressos com o tratamento a base de produtos oriundos da planta é uma ofensa aos próprios artigos científicos e estudos que foram e são proporcionados pelas academias e pelos profissionais de saúde. Alguns exemplos dos profissionais: Elisaldo Carlini, Raphael Mechoulam, Natalya Kogan, John M. Mcpartland, dentre outros profissionais que se dedicam a estudar os efeitos terapêuticos com a Cannabis. 

Hoje sabemos que com a sintetização do sistema endocanabinoide pelo químico Raphael Mechoulam, descobriu-se que as moléculas da planta interagem com esse sistema, sendo que cada molécula canabinoide (THC, CBD, THCA, etc.) traz uma resposta diferente ao nosso corpo. A utilização completa dos componentes da planta proporciona o completo efeito medicinal, o chamado efeito comitivo ou entourage, tratando de ser a ação conjunta dos canabinoides, aumentando sua potência e, organicamente, a eficácia contra doenças. Ademais, temos, dentro do nosso organismo, o sistema endocanabinoide, que coordena todos os outros sistemas, contendo receptores pelo organismo inteiro (CB1; CB2; TRPV1; TRPV2; GPR18; GPR55; e GPR119) que, em conjunto com os canabinoides, funcionam, assim, como “chave” e “fechadura”.

Por isso, ao utilizar a Cannabis, tem-se efeito no organismo como um todo e não somente em um sintoma específico. Conforme Pacher e Kunos, ao modular a atividade do sistema endocanabinoide, é possível interferir em praticamente todas as doenças que afetam os humanos até os dias atuais. O que ocorre é que, ao adoecer, o organismo passa a ser deficiente desses canabinoides, necessitando dos fitocanabinoides, que vem de origem da planta. Com essas moléculas reestabelecidas, reequilibra-se o organismo como um todo, para que volte à homeostase anterior.

Ou seja, hoje nós já temos diversos artigos científicos sobre a eficácia da maconha no tratamento de diversas patologias. Os estudos clínicos e teóricos possuem vasta validade e respeito pela classe de medicina mundial. Atualmente, estudos comprovam que a planta é eficaz para tratar doenças como: ansiedade, insônia, depressão, inflamações, anorexia, artrite, artrose, endometriose, dermatite, doença de Crohn e a colite ulcerosa, HIV, doenças reumáticas, epilepsia, autismo, osteoporose, paralisia cerebral, glaucoma, efeitos do câncer, doença de Alzheimer, Mal de Parkinson, Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), esclerose múltipla, fibromialgia, dependência de outras drogas como, por exemplo, o crack, dentre outras patologias. 

Considerando que a Anvisa não limita quais doenças possam ser tratadas com o medicamento, mas com a exigência de que o tratamento seja o último recurso, quando outros alopáticos já foram prescritos e não surtiram efeitos, o Conselho Federal de Medicina ao publicar a nova Resolução de vedação ao médico para prescrever o CBD somente nos casos para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa é considerado um retrocesso quando visualizamos o direito à saúde e os estudos clínicos e teóricos que são publicados pela classe médica, isso inclui uma vasta gama de profissionais e gêneros da profissão. 

Os interesses políticos e privados, como por exemplo, do Governo Federal e das indústrias farmacêuticas está transparente para coibir e inibir o acesso à saúde e tratamento de qualidade para a sociedade civil brasileira. Enquanto o mundo discute, normatiza e regulamenta os procedimentos da inserção da maconha no sistema legalizado, o Brasil inclina ao retrocesso e à discriminação. 

A comunidade médica que já prescreve os tratamentos a base do óleo de cânabis não pode desanimar, pois como foi visto no próprio estudo, a Resolução CFM nº 2.113/2014 já trazia as vedações e restrições e só tivemos grandes mudanças no cenário brasileiro com a aplicação da desobediência civil propiciada pelos profissionais médicos, advogados e sociedade civil que obtivemos êxitos e avanços quanto ao tema, pois assim, construímos o fato social. 

Para elucidar, a pirâmide de Kelsen preconiza a hierarquia das normas, estabelecendo que a Constituição Federal pertence ao topo da lista e, por conseguinte, às Emendas Constitucionais, Leis Complementares, Leis Ordinárias e Tratados Internacionais, Decretos e por último às Resoluções ou Portarias. 

Até mesmo as RDCs Anvisa possuem um caráter mais notório e progressista do que as Resoluções do Conselho Federal de Medicina, como por exemplo, ao regulamentar a importação, fabricação e comercialização dos produtos a base da planta. 

O Código de Ética Médica preconiza os princípios fundamentais da medicina como um serviço da saúde do ser humano e da coletividade que será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. A partir desse entendimento, vejamos os princípios, obrigações e responsabilidades da classe médica que estão contidos em no referido código: o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional; compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente; o médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício; jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade; o médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho; o médico empenhar-se-á em melhorar os padrões dos serviços médicos e em assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública, à educação sanitária e à legislação referente à saúde; o médico deve indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas às práticas cientificamente reconhecidas e respeitada à legislação vigente. Estes são somente uma síntese da colação do normativo para entendermos os preceitos éticos da atuação do profissional.

Pois assim, a Resolução CFM nº 2.324/22 é incongruente no sentido de que o normativo não aborda estudos científicos para a vedação da prescrição do tratamento a base da maconha, bem como fere o direito à vida, a saúde, a liberdade social e profissional, a educação e estende-se em sentido contrário ao Código de Ética Médica e das RDCs Anvisa e ainda propicia para a insegurança jurídica da sociedade civil brasileira. 

Portanto, o estudo conclui que a Resolução CFM nº 2.324/22 não progrediu, como retrocedeu e continuou discriminando a liberdade e autonomia do médico prescritor de cânabis para fins terapêuticos. No entanto a luta continua, aplicando-se a desobediência civil e a construção do fato social, as comunidades profissionais médicas e juristas, juntamente com a sociedade civil, deverão estar mais unidas para combatermos as ideias discriminatórias e obscuras quanto ao tema da maconha no Brasil, para que em um futuro próximo possamos exercer nossa liberdade democrática como cidadãos e tendo de fato às garantias de direitos fundamentais que foram conquistadas em nossa Constituição Federal.   

BIBLIOGRAFIA:

BARIONI, Murilo. A descriminalização da maconha no Brasil. Tese de Conclusão de Curso. São Paulo, 2021. 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

BRASIL. Código de Ética Médica. Disponível em: https://transparencia.cfm.org.br/index.php/legislacao/cem-atual

BRASIL. Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/90. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm