Bíblia de Maconha?

Texto por: Hugo Drosera

“E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser- vos-á para mantimento.”

Você sabe o que é História? A História, como ciência, nasce à cerca de 10 mil
anos – como cantou o lendário Raul Seixas – com os povos que passaram a dominar a
técnica da escrita e consequentemente passaram a arquivar informações, fossem seus
mitos, suas técnicas de agricultura, as sucessões de reis e rainhas, contos de guerras,
descrições de êxodos e fugas de toda sorte, rebeliões escravas e revoluções… tudo que
a humanidade passou a documentar serviu de alicerce para o desenvolvimento da ciência
da História. Chamamos todo o período antes disso de “pré-história” – mesmo assim os
povos ágrafos deixaram seus registros além de ainda existirem e resistirem por esse
mundo.

Mas nos últimos anos – mais precisamente nos últimos 5 séculos e meio – uma
revolução aconteceu especialmente no Ocidente para o incremento da História e o
nascimento “oficial” da impressa. Johannes Gutenberg, ainda durante o Sacro Império
Romano-Germânico, inventou a prensa do tipo móvel. Os “tipos” eram as letras que, feitas
em blocos separados de ferro fundido, poderiam imprimir páginas em larga escala
resultando em uma invenção mais avançada do que a prensa chinesa, inventada cerca de
4 séculos antes. Aos chineses do primeiro século do nosso calendário também é atribuída
a invenção do papel, feito a partir de uma pasta de fibras maceradas – diferente do
famoso papiro egípcio, obtido de fibras vegetais trançadas e inventado há uns 4 mil
anos… tá! Mas e a maconha, meu filho? Cadê a cannabis nisso tudo?

Calma que a gente chega lá! Vem comigo… Voltando lá no Gutenberg, século
XV, o primeiro livro escolhido para a ser produzido em uma escala até então impensável
foi a famosíssima Bíblia Sagrada, bem num período em que livros inteiros na Europa
eram escritos e transcritos manualmente há séculos e ser alfabetizado era um privilégio
de poucos. A possibilidade de se adquirir livros assim tanto fomentou a ciência e a
alfabetização quanto contribuiu para alguns anos mais tarde potencializar a Reforma
Protestante – um movimento cristão que promoveu uma grande cisma com as
autoridades católicas e mudou para sempre a História do Mundo, mais uma vez.
Interessante isso tudo, não? Pois bem, e a maconha, cadê? Chegou a hora da polêmica:
as Bíblias de Gutenberg eram feitas da nossa benedita erva “do mal”…

Bom, é assim, mas também não é bem assim! O mais certo é dizer que estas
bíblias eram feitas “com maconha” do que “de maconha”. O papel usado para fabricar
estas bíblias, e boa parte dos livros impressos mundo afora até o século XIX, era
proveniente de uma pasta que misturava o amido do trigo, o cânhamo – a fibra obtida da
cannabis – fibras de linho, entre outras quantidades menores de fibras vegetais também
utilizadas para fabricação de tecidos. Vale lembrar que na China já se utilizava o tecido de
cânhamo desde os tempos do papiro no Egito – uns 40 séculos atrás. Durante mais de
400 anos a maioria dos livros e impressos produzidos tinham cânhamo em sua
composição. Hoje, 6 séculos depois, das prováveis 180 bíblias impressas inicialmente, 60
estão espalhadas pelo mundo, 12 impressas em pergaminho e 48 em papel (com
cânhamo). Elas se encontram em bom estado, sendo uma verdadeira obra de arte,
encadernadas e ilustradas a mão, impressas em letras góticas, tendo levado cerca de três
anos para ficarem prontas com a produção iniciada em 1450. Portanto, é possível afirmar
com segurança que a maconha está diretamente ligada a História da informação, da
impressa e da cristandade!

É curioso que a mesma planta que foi largamente utilizada para tonar possível
o espalhamento da religiosidade cristã – em especial o cristianismo protestante que
tornara mais acessível os textos sagrados aos povos já cristianizados em especial na
Europa – passou a ser alvo do moralismo religioso bem aqui na América Latina, onde
utilizou-se amplamente a cannabis em seus mais diversos usos. No México haviam
regulamentações sobre a planta desde o século XVIII, já o Brasil tinha até uma benfeitoria para cuidar dos assuntos do cânhamo. A erva que chegara inicialmente com os cristãos europeus foi assimilada em uso ritualístico nas comunidades indígenas e também era sabidamente apreciada pelos povos escravizados de África por séculos antes das grandes colonizações cristãs.

Outro fato curioso é que os Estados Unidos são o maior país protestante do
mundo e trabalharam arduamente para difamar moral e religiosamente a cannabis, e a
guerra às drogas se estendeu covardemente sobre todo o continente vitimizando
populações nativas e socialmente vulneráveis. O Brasil é hoje um dos países onde essa
religiosidade mais cresce, sendo o 4 o país com maior número de adeptos de
denominações protestantes. Paralelamente a este crescimento, o Brasil evidencia um
claro retrocesso nas políticas de descriminalização da cannabis, seja para uso medicinal,
industrial, recreativo e até religioso – pois, sim, há quem faça uso espiritual da Erva, e
estes também precisam ser respeitados. Ademais, é fundamental que qualquer grupo
religioso desfrute do direto de exercer sua crença sem utilizar das entidades civis para
forçar seus próprios valores. Talvez isto comprove de certa forma o que está escrito no
livro de Mateus 15, 7-9: “Hipócritas! Bem profetizou Isaías a respeito de vocês, dizendo:
este povo me honra com os lábios mas seu coração está longe de mim. Em vão me
adoram; seus ensinamentos não passam de regras ensinadas pelos homens”. E o que
nos parece, “aquele que julga os outros é indesculpável, pois está condenando a si
mesmo naquilo em que julga, pois pratica a mesma coisa” (Romanos 2, 1).

Será que o uso da cannabis em qualquer circunstância – medicinal, recreativa,
têxteis, papéis, religião… – é tão contra os princípios do cristianismo assim? Parece,
historicamente, que não. Na verdade, a maconha mais ajudou do que atrapalhou! E o que
seria da História se não fossem essas primeiras Bíblias impressas em “folhas de
cannabis”…

Hugo é escritor, poeta declamador, editor literário, músico e ilustrador, além de ter produzido diversos eventos e atividades culturais. Um dos fundadores do movimento ‘A Rua Declama’, rodou os saraus pelo Sudeste e Sul e algumas localidades no Nordeste e Centro-Oeste, chegando a participar do Slam BR 2017. Ainda em plena atividade. Como músico, viajou pelo Brasil e América Latina como baixista/vocalista de bandas de metal extremo. Misturou música instrumental e poesia com o Baurete Trio, e atualmente estuda gravação/mixagem e grava para projetos que vão do metal ao reggae, do rap old school à música eletrônica.