Habeas Corpus para o autocultivo da Cannabis

Texto por: Andreza Rossini

A medida judicial garante a liberdade de quem planta com o objetivo de produzir medicamentos

Estima-se que aproximadamente 600 brasileiros que cultivam Cannabis Sativa com fins medicinais, tenham garantido por lei o direito de ir e vir após notificar a justiça sobre o plantio, de acordo com dados levantados pela Rede Reforma, associação judicial que elaborou a tese do Habeas Corpus preventivo e conquistou o primeiro salvo conduto com este fim no Brasil, em 2016. 

Segundo a advogada antiproibicionista, Gabriella Arima, integrante da Rede Reforma, a medida é possível exclusivamente para o uso medicamentoso da maconha, com o acompanhamento médico. 

“Não existe nenhuma restrição relacionada às patologias aceitas judicialmente. A partir do momento que se tem indicação médica do profissional que acompanha esse(a) paciente, cabe a impetração da ação judicial, desde que tenhamos os documentos básicos necessários”, afirmou. 

O cultivo para uso pessoal é definido como crime por um dos verbos do artigo 28 da lei de drogas, ao contrário do uso adulto, que não prevê pena de reclusão. Uma pesquisa (2021) realizada pela EXAME/IDEIA, aponta que 78% dos brasileiros afirmaram ser favoráveis ao uso de cannabis para fins medicinais e 77% declararam que usariam esse tipo de medicamento se receitado por um médico*. 

Atualmente, nas farmácias ou via importação direta, um vidro de canabidiol custa em média R$ 2 mil, considerando um frasco de 30 ml, com a concentração de 200mg por ml. Em muitos casos a duração é de cerca de 30 dias, de acordo com o levantamento feito por nossa equipe de reportagem com pacientes legais. 

A também advogada antiproibicionista Cecília Galício, diretora da rede Reforma, alerta que o Habeas Corpus preventivo só é necessário devido à atual situação de violência policial no país, que indicia quem planta maconha, com fins medicinais, pelo crime de tráfico de drogas. 


“Quem precisa cultivar com o objetivo de salvar a própria vida não pode correr o risco – ou estar em risco – de ser presa (o). Além disso, existe a ameaça de perder o acesso à planta e, consequentemente, aos medicamentos que garantem a vida deste paciente, em uma possível abordagem com violência policial”, afirmou. 

A microempresária Jéssica Vieira, de 34 anos, chegou a ser presa, em Caxias do Sul (SC), devido ao seu plantio para uso medicinal, acusada de tráfico de drogas, em 2020. Ela já era paciente legal e realizava acompanhamento com médico especialista, apresentando melhora em seus quadros de depressão e grave alergia cutânea. Na época da prisão, a imprensa local divulgou o caso como um ‘laboratório de drogas’. 

“Eu sofria de depressão e ansiedade grave desde os 17 anos de idade, tive duas tentativas de suicídio e só apresentei melhora com o tratamento a base do CBD, que me ajudou a dormir e foi um verdadeiro relaxante muscular, aliviava qualquer dor em questão de minutos. Fiz também uma pomada que ajudou a eliminar as manchas do meu corpo e, aos 10 e 12 anos, minhas filhas me viram de shorts pela primeira vez”, conta. 

Na prisão, Jéssica conseguiu seu Habeas Corpus e atualmente tem permissão judicial para produzir o próprio medicamento. 

Diversos estudos, entre eles levantamentos realizados pelo National Institute on Drug Abuse (Instituto Nacional de Abuso de Drogas, em português – Nida), apontam que o uso do tetrahidrocanabinol (THC) e/ou do canabidiol (CBD) são capaz de tratar uma série de doenças, principalmente crônicas, como ansiedade, depressão, câncer, glaucoma,distúrbios de sono, epilepsia, fibromialgia, esclerose múltipla, artrite e etc. Na maioria dos casos o tratamento segue por toda a vida do paciente. 

Uma pesquisa recente apontou que pacientes com dores crônicas cortaram até 60% do consumo diário de morfina na primeira rodada de acompanhamento especializado, taxa que chegou a 73% na segunda avaliação médica. 

Tramita na Câmara Federal o Projeto de lei 339/15 que visa liberar o cultivo da Cannabis no Brasil, porém apenas para empresas que visam produzir o medicamento de forma industrial e às associações, excluindo da PL os brasileiros que precisam do auto cultivo para o cuidado pessoal com a saúde. 

Segundo dados divulgados pela Anvisa, em 2021, 32.416 brasileiros tinham autorização para importar medicamentos a base de cannabis. 

O CULTIVO É PARA TODOS? – A experiência com o cultivo e as possibilidades de plantio do paciente são essenciais para possuir um HC com resultado efetivo. 

Cecília Galício ressalta que o plantio deve ser efetivo. “Não é tão simples cultivar o próprio remédio, diferente do uso adulto, o medicamento não é opcional. O cultivo da Cannabis é algo muito sensível e não é da primeira vez que o paciente vai conseguir o rendimento necessário para manter o tratamento. Podemos pensar em questões como o tempo necessário do trabalho de plantio para uma mãe que cuida do filho com deficiências motoras ou para o próprio paciente com limitações físicas, que não tem a possibilidade de levantar o vaso da planta”. 

No Brasil o acesso à saúde é universal através do Sistema Único de Saúde (SUS)  e, com o Habeas Corpus, o paciente assume a responsabilidade pela própria saúde. 

ABORDAGEM POLICIAL –  Para entrar com o HC é necessário que o paciente já esteja em tratamento e já tenha iniciado o cultivo. A dúvida que fica é: quais são os direitos enquanto a justiça não apresenta uma sentença para o meu caso? 

“A partir do momento que uma pessoa impetrar um habeas corpus ele vai ser estabelecido contra as autoridades policiais: militar, civil e/ou federal. Ele é protocolado e distribuído a um juiz ou vara competente e então são emitidos ofícios para as autoridades informando sobre essa medida, o que mina a possibilidade de uma possível incursão policial no sentido de flagrante, pois os policiais já sabiam da existência desse cultivo. Obviamente, não podemos dar certeza devido a violência da polícia brasileira, mas nunca aconteceu na história uma ação policial no meio do processo”, explica a advogada Gabriella Arima. 

TENHO UM HC. POSSO PORTAR A FLOR? – O que o paciente vai ou não poder portar fora de sua residência será estabelecido pela decisão judicial. Por exemplo, se o médico prescreveu o uso da cannabis de forma vaporizada é possível levar consigo a quantidade de medicamento necessária para aquele dia. “Importante lembrar que vaporizar é diferente de portar um cigarro de maconha, um é visto como possibilidade de tratamento médico, outro não”, ressalta Arima. 

O paciente que não tem condições de arcar com os custos de um advogado pode procurar a defensoria pública ou instituições – como a Rede Reforma – que realiza atendimentos com valores mais acessíveis.
 * A pesquisa ouviu 1.243 pessoas em entrevistas feitas por telefone entre os dias 19 e 20 de maio de 2021.