Como uma enfermeira piauiense tem protagonizado a formação de médicos prescritores

Texto por: Marina Marcondes / Arte por: João Dório

A jovem de 31 anos adentrou no universo da Cannabis medicinal para ajudar o sobrinho e nunca mais saiu.

Nascida em uma família conservadora, a enfermeira Jamila Rocha viu sua vida ser transformada por completo quando o sobrinho de 09 anos foi diagnosticado com autismo. A busca por uma alternativa diante da ineficácia do tratamento tradicional, a levou a conhecer a Cannabis medicinal em 2019. 

Mesmo taxada de louca, enfrentou com coragem e determinação a incredulidade dos familiares para defender a maconha como um medicamento. A ousadia valeu a pena: a resposta no tratamento do sobrinho foi imediata e surpreendente. A partir daí, Jamila também se tornou paciente medicinal para lidar com as dores crônicas na coluna. 

A enfermeira se formou como consultora canábica no curso da Inflore, da professora de Cannabis Luna Vargas, e também fez pós-graduação no tema na faculdade Unyleya. Atualmente, Jamila trabalha como especialista na ciência e na indústria da Cannabis e consultora técnica, além de dar suporte científico para médicos: “Eu fico muito feliz de colaborar de alguma maneira com a educação desses profissionais que querem aprender e buscam saber mais sobre Cannabis que é milenar, mas para a nossa realidade do Brasil é como se fosse uma medicação nova”, diz.

Conheça um pouco da jornada da mulher que já educou centenas de médicos, e está fazendo história no cenário da Cannabis medicinal no Brasil na entrevista exclusiva para a Revista Ganja. 

Revista Ganja: Como a cannabis entrou na sua vida? 

Jamila Rocha: A cannabis entrou na minha vida em 2019, e até então eu nunca havia tido contato algum. Vim de uma família totalmente proibicionista, de nordestinos e católicos fervorosos. E, em 2019, o meu sobrinho, João Neto, foi diagnosticado com autismo. E começou a fazer o tratamento convencional, mas teve muito efeito colateral das medicações. A partir daí comecei a procurar novas terapias e, com isso, cheguei à Cannabis. Aí conversei com minha cunhada e meu irmão totalmente cético, ele não acreditava. Então fomos desenvolvendo e conseguimos começar o tratamento dele. Em três semanas de uso, o menino mudou completamente o comportamento. As estereotipias do autismo foram totalmente modificadas. O comportamento e a evolução dele na escola foram impressionantes, até as pedagogas ficaram surpresas. Comecei a estudar muito mais sobre a Cannabis e vi que eu poderia ser uma paciente em potencial. Aí fiz um curso e, a partir disso, consegui um desconto em uma consulta médica, e comecei o meu tratamento com Cannabis. Sou uma paciente de dor crônica. Tenho três hérnias de disco e fiz cirurgia na coluna com 18 anos. Mas o tratamento convencional não resolveu e eu sempre tive crises recorrentes de dor. Então, antes dessa consulta, passei nove anos sentindo dor mensalmente. Depois que eu comecei a fazer tratamento com Cannabis minha vida se transformou. Atualmente fazem dois anos que faço tratamento e eu nunca mais tive crise de dor. Para falar que nunca, eu tive um único episódio durante esse tempo todo, e a dor foi controlada só com a cannabis. Eu não faço uso de mais nenhuma medicação alopática.

Revista Ganja: O cenário da Cannabis é majoritariamente masculino e a maioria dos grandes debates ocorre no eixo Rio-São Paulo. O machismo e o preconceito são muito latentes? 

Jamila Rocha: Sim, é uma realidade. Ainda tem muitos homens à frente no mercado canábico brasileiro. Só que eu acho que está se expandindo mais a quantidade de mulheres que estão se inserindo nesse mercado e tomando esse espaço para si. Eu vejo isso como uma evolução muito grande. 

No mercado, na indústria da Cannabis, em relação a área medicinal, eu não enfrentei nenhum preconceito até o momento. E todos os médicos que treinei super compreenderam o meu posicionamento e a minha forma de ensinar e estiveram disponíveis para aprender. Mas ainda é um mercado, sim, com muitos homens. Os meus chefes que são homens, que são os presidentes e os diretores da empresa, todos me respeitam muito pelo conhecimento que eu tenho, pela maneira que eu me posiciono dentro da empresa.

Sim, os debates ocorrem no eixo Rio-São Paulo, mas houve uma facilidade com a pandemia das comunicações serem on-line. Então se tornou muito mais acessível e viável. 

RG: Como você se sente sendo uma mulher nordestina que está treinando centenas de médicos?  

JR: Eu digo que passei quase três anos da minha vida voltada para os estudos de Cannabis. Porque quando falei “vou estudar Cannabis”, quem já estava ao meu redor, no meu eixo de trabalho, simplesmente virou para mim e disse “você tá ficando louca”. Uma enfermeira, dermatologista, trabalhando com ozonioterapia, vai simplesmente largar tudo para virar uma consultora canábica? Tá doida, tá estudando maconha, ta doida”. 

Em nenhum segundo eu tive medo ou vergonha. Eu tive orgulho de persistir naquilo que acredito e vejo benefícios. Não só na minha saúde, mas como na do meu sobrinho e em todos que estão aqui na minha casa e estão ao meu redor. E eu fico muito feliz de estar treinando, não só médicos, mas pessoas com conhecimento básico ou nenhum sobre Cannabis. Então eu fico muito feliz quanto a isso. 

RG: Poderia falar um pouco sobre o treinamento que você oferece aos médicos?  Como é a receptividade deles? Quais os principais pontos de educação que eles precisam? 

JR: O meu treinamento inicial é voltado para novos médicos prescritores, que vão ter o primeiro contato com a planta, com o produto, com toda estrutura e cadeia da indústria da Cannabis. Portanto, eu ensino a eles como é feito o processo de escolha de genéticas, como lidar com o cultivo, como é feita a extração daquele produto, como funciona todo o processo até chegar ao produto final para chegar às mãos do paciente. Logo, o médico tem uma responsabilidade absurda de entender essa cadeia de produção para ele poder prescrever um produto de qualidade para esse paciente. E aí estamos trabalhando com a segurança do médico e do paciente. Por isso é de extrema importância ele entender essa base inicial do que é a planta e como funciona o cultivo e a extração e até as escolhas das genéticas para este medicamento futuro. Eu tenho uma receptividade muito boa em relação aos médicos. Inicialmente, me sentia muito insegura por ser enfermeira e estar dando aula para médicos. Mas, com o tempo, fui entendendo que o que vai fazer o diferencial é o conhecimento e a maneira como eu passo esse conhecimento. Se eu tenho o conhecimento técnico-científico foi porque eu estudei e fui atrás e estou ali disponível para sanar dúvidas e aprender com eles também porque todo mundo aprende alguma coisa. Estou ali aberta para o diálogo. 

Aquilo de conhecimento que eu tenho eu passo tranquilamente, eu não tenho medo nenhum, e nem quero ser uma pessoa que priva informações. Para mim, quanto mais informações eu conseguir passar, melhor é. 

Os principais pontos de educação que eu sempre observo entre os médicos são: aprender o que é a planta, como se dá o seu funcionamento, aprender sobre o Sistema Endocanabinóide e os canabinóides em si, o efeito entourage ou efeito comitiva, aprender e entender essa sinergia dos terpenos, flavonóides e fitocanabinoides, vendo a planta como um todo e não como partes isoladas. 

Óbvio que tem algumas patologias que que têm uma necessidade de ter uma administração isolada. Mas, os médicos principalmente têm que entender que a terapia canabinoide é uma terapia completamente individualizada. Eles devem ter esse olhar humanizado para o paciente, e entender o indivíduo como um ser único e que precisa de um atendimento único e específico voltado para si próprio. Porque o Sistema Endocanabinóide é único e cada um vai ter uma maneira de interagir com a Cannabis diferente. 

Outro ponto que gosto de deixar bem claro para os médicos e profissionais da saúde, e no contexto em geral quando dou aulas até mesmo para os próprios consultores, que estão aprendendo e entrando no mercado de Cannabis, é entender que todo uso de Cannabis é terapêutico. Eles têm que compreender que vão existir pessoas que já fazem uso da planta, seja fumando ou vaporizando – qualquer método de uso que seja – que, na cabeça dessa pessoa é um uso recreativo.  Essa pessoa chega em casa, está cansada, está estressada e vai fumar um. Esse “fumar um” pode se configurar como algo terapêutico. O que falta é a educação para fazer esse indivíduo entender que ele pode consumir de outros métodos e assim beneficiar a saúde dele sem causar danos como o método de fumar sem praticar a redução. Mas não deixa de ser um ato terapêutico. Porque ele está fazendo algo para melhorar o que não está bom em si. Eu gosto de deixar bem claro para os médicos essa ideia de acolhimento, e não de separar esse paciente que faz uso recreativo. A gente tem que entender que tem pessoas que vão acabar indo no consultório, que não querem mais fumar, e que fazem o uso da Cannabis de outra maneira. Aí entra um óleo, comestível ou vaporizador. Por isso defendo a ideia de acolhimento de uma forma geral. 

RG: Não se vê muito do Sistema Endocanabinóide – SEC – nos estudos em universidades.  Como é para os profissionais quando entram em contato pela primeira vez com informações sobre o SEC?

JR: Falar sobre o Sistema Endocanabinóide nas universidades é um ponto que ainda falta muito na educação do Brasil. Falta muito na educação dos profissionais de saúde no contexto geral do País. Médicos que conseguiram ver isso na faculdade são profissionais que saíram recentemente da faculdade. Então eles viram pouco sobre o Sistema Endocanabinoide. Mas quem saiu no começo dos anos 2000, esquece porque não viu quase nada ou nada a respeito. 

Portanto, estão nessa corrida contra o tempo de se atualizar. Então quando eu faço uma consultoria para um médico que nunca ouviu falar do SEC eu vou começar basicamente do zero. E é estar disponível para abrir o olhar desses profissionais e ajudar eles nesse caminho porque não é fácil, mas as informações estão aí a todo momento e a toda hora. Basta sentar e estudar, buscando profissionais e fontes científicas sérias; acredite, no Brasil temos excelentes profissionais no assunto. A maioria dos profissionais quando eu começo a falar do SEC o olhinho chega brilha, sabe? Porque é algo que eles já ouviram falar muito por longe, mas aí eles começam a entender que é um sistema fundamental para o nosso funcionamento fisiológico do nosso organismo, e muito negligenciado. 

Se pegarmos as novas pesquisas, o que acontece. O ser humano a partir dos 30 anos tem um declínio hormonal, e isso é natural e fisiológico. E isso acontece também com o SEC: a gente passa a não produzir tantos endocanabinóides que seriam para suprir a nossa necessidade. Logo, a gente precisa de uma suplementação com fitocanabinoides para suplantar aqueles endocanabinoides que nós não produzimos mais em grande quantidade. A gente começa a girar essa chavinha na cabeça do profissional e a entender o quão fundamental e necessário é estar com esse sistema equilibrado para modular as outras funções do nosso organismo. 

E eu fico muito feliz de colaborar de alguma maneira com esse cuidado e essa disponibilidade desses médicos que querem aprender e buscam saber mais sobre Cannabis que, se for pelo contexto histórico, é algo milenar, mas para a nossa realidade de Brasil é como se fosse uma medicação nova. Eu digo que o meu trabalho é um trabalho de formiguinha, mas é um trabalho de formiguinha que me dá muito orgulho.

RG: Você acha que o Brasil está preparado para a produção nacional de óleos de cannabis? 

JR: O Brasil não só está preparado, como está passando da hora de uma legalização da produção nacional de cannabis. O Brasil tem o melhor solo, o melhor clima, as melhores pessoas, os melhores profissionais. Tá tudo aqui. A gente só precisa de uma legislação.  

RG: Como você se sente trabalhando em uma empresa farmacêutica tendo o debate sobre a indústria farmacêutica não é a indústria da cannabis? 

JR: Para começar eu não trabalho para uma indústria farmacêutica. Eu trabalho para uma indústria da Cannabis. Porque acredite: as empresas de importação não são do ramo farmacêutico. A maioria vem do ramo de suplementação. Por exemplo, as empresas que trabalham nos Estados Unidos – porque lá a Cannabis é regulamentada como suplemento. Lá, o órgão regulamentador é a FDA – Food and Drug Administration –  agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA [nota da edição]. 

Então, não temos essa carga da indústria farmacêutica. Porém, os profissionais que chegam para treinar, que têm uma experiência no mercado de vendas, vêm da indústria farmacêutica. E aí cabe a mim, como treinadora, que vai passar para ele esse primeiro contato com a indústria da Cannabis de forma clara e objetiva: que indústria da Cannabis não é a indústria da farmácia. Temos aí um abismo muito grande que faz essa separação. A indústria farmacêutica quer tomar o mercado da Cannabis para si, e estamos resistindo em não abrir esse mercado. 

Porém, o que as regulamentações no Brasil fazem é abrir o mercado para indústria farmacêutica. Mas, fora do Brasil, a gente responde como um produto de suplementação alimentar. Contudo, as empresas que trabalham hoje no mercado brasileiro com importação não são da indústria farmacêutica; são, sim, da indústria da Cannabis. Só que já existem algumas empresas que meio que dão um zignal [sic] e estão nesse limbo; não é nem uma e nem outra. Mas, até segunda ordem, enquanto não tiver uma empresa que seja mesmo farmacêutica tomando de conta, até segunda ordem, nós somos indústria da Cannabis.

E até uma grande surpresa que eu tive é que a empresa que eu trabalho, me acolheu de uma maneira que achava que não seria acolhida porque eu sempre tive o meu posicionamento em relação ao proibicionismo, aos métodos de uso da Cannabis, ao uso terapêutico. Em nenhum momento eles me repreenderam, ou deixaram eu me sentir repreendida. Na primeira aula que dei eu deixei claro que a indústria da Cannabis não é a indústria farmacêutica, que eu aprendi com a professora Luna Vargas. Mas, eles não me repreenderam de nenhuma forma. Eu sinto que fui muito bem acolhida por uma empresa com um propósito muito bom no mercado e preocupada em entregar informação aos seus profissionais e um produto de extrema qualidade aos seus pacientes. 

RG: Na sua visão, como se dará o cenário da cannabis medicinal para o futuro? 

JR: A minha visão de mercado hoje é: o mercado brasileiro só tem a evoluir e a crescer. Eu acho que a Cannabis hoje chegou em um nível que não regride mais. É só daqui para frente. Acho que virão muitas novas legislações, uma nova legalização para o uso medicinal. Infelizmente, eu acho que o recreativo, ou uso adulto com queira chamar, ainda não chega com essa força, como o medicinal. Mas acredito que seja um ponta pé inicial para se começar a discutir, e surgir um diálogo coerente sobre o assunto. 

E quem pensa em entrar nesse mercado, quem gosta da planta e está querendo começar a estudar, acorde porque já era para ter começado a estudar bem antes porque o barco já está a todo vapor em alto mar. Então vai ter que pegar um jet ski ou uma lancha para correr atrás desse barco porque ele já está avançado e ele é bem rápido. 

E para o futuro eu vejo grande possibilidade de os produtos estarem na farmácia, terem um estoque como medicamento convencional. E eu vou dar um spoiler para vocês: eu creio que, futuramente, com essa abertura de produtos nas farmácias, possivelmente a Anvisa, em algum determinado momento, possa tirar as autorizações de importação com a justificativa de que não vai ter mais necessidade de importar, porque a Anvisa pode alegar “já temos produtos suficiente no mercado que vão suprir a demanda do povo brasileiro (obs: eu não concordo), então não tem mais a necessidade de ter essa importação de produto”. Mas isso é uma suposição minha, é o que eu vejo e ouço nos bastidores da indústria e de acordo com o movimento do mercado.

RG: Por fim, de que forma o boom de pesquisas e estudos sobre cannabis podem contribuir para o enfrentamento do proibicionismo?  

JR: As pesquisas são as nossas bases de diálogo, de enfrentamento ao proibicionismo e de tudo que você possa imaginar que é negativo com a Cannabis. Com as pesquisas é que a gente pode rebater tudo. Então, pesquisas e estudos são fundamentais porque aí não tem como negar a ciência. 

Não tem como negar as evidências científicas em relação à Cannabis que hoje em dia estão totalmente ao nosso favor, tanto da área medicinal ou quanto ao uso adulto. E aí só tende a aumentar mais ainda a nossa perspectiva e a nossa certeza sobre aquilo que escolhemos trabalhar.