OS BILIONÁRIOS E A CANNABIS

Ilustração: @fabioescreve | Texto: Hugo S.

Recentemente as redes sociais foram novamente insufladas de cortes polêmicos do ricaço Elon Musk em apologéticas baforadas de cannabis com o podcaster Joe Rogan em 2018, e alegou já ter feito uso e defendido a planta em outras ocasiões. Mas o que isso significa? E, indo mais a fundo, o que pode estar implícito? O mercado bilionário que a indústria da cannabis tem se tornado na última década nem sempre deve ser encarado como uma resposta positiva quando o assunto é a legalização e a reação em cadeia que viria deste processo, que tem sido operado principalmente no sentido da flexibilização de leis proibicionistas juntamente da adaptação do “mercado” a este novo cenário. Com isso em mente, vamos tentar iluminar essas questões.


Primeiramente, precisamos entender o que é um bilionário. Grosso modo, é a pessoa que alçou a fortuna privada de 10 dígitos antes da vírgula. A maioria de nós não vê isso nem brincando na calculadora, é até difícil de ler à primeira olhada. Antes dessas pessoas se tornarem figuras públicas, esses números só eram mais comuns de serem citados em cálculos astronômicos – massas estelares, idade do universo, distâncias cósmicas – ou, numa dimensão um pouco “menor”, essas cifras também podiam e podem ser vistas no orçamento de países inteiros. Hoje, entretanto, elas estão nos bolsos de pouco mais de 2600 pessoas mundo afora, os quais juntos possuem mais de 13 trilhões – ou 13 mil bilhões – de dólares em patrimônio. Isso quer dizer que só os mais ricos dos mais ricos acumulam mais de 13% do PIB mundial – cerca de 96 trilhões. Elon Musk é o segundo nessa lista.


A partir dessa perspectiva, qualquer coisa que esse homem fizer em relação à cannabis terá um impacto sobre a sociedade. Os contribuintes americanos, por exemplo, arcaram com US$ 5 milhões, pois a empresa pública NASA (Agência Aeroespacial Americana) resolveu realizar uma testagem de uso de substâncias em nos funcionários da Space X, empresa de Musk, após o episódio com Rogan. Sem entrar no mérito da questão se é certo ou errado, o fato é que o dinheiro de impostos foi usado em benefício da empresa que obviamente tinha condições de arcar com esse gasto – ou investimento, depende do ponto de vista. É comum em tempos de crise os Estados “socorrerem” grandes empresas com aportes gigantescos, mas não foi este o caso, em que o próprio dono da empresa semeou a polêmica. Afinal, US$ 5 milhões nem deveria ser muito para alguém que é herdeiro de uma fortuna que veio da mineração de pedras preciosas na África do Sul durante o Apartheid – regime de segregação racial imposto sobre a África pelas superpotências no século passado. E essa é só uma das concessões feitas pelo estado norte-americano ao sul-africano Elon Musk. Vale lembrar que se a propaganda é a alma – ou a arma – do negócio, no mundo das “figuras públicas” alguém como Musk que literalmente “vende ciência” terá posições cientificamente compatíveis com as descobertas medicinais da cannabis, além de mantê-lo próximo dos interesses da juventude – nada é mais político do que isso, e ninguém precisa ser “mais político” do que um multibilionário.

É fundamental lançar esse olhar sobre as pessoas que vão investir nesse mercado num cenário de legalização ou flexibilização sobre a cannabis e seus subprodutos.

Sim, queremos a cannabis legalizada “a todo custo”, mas qual o custo que estamos dispostos a pagar? Pois seria muito bom termos lojinhas de plantas orgânicas, cultivadas em grows domésticos só com o suprassumo das melhores genéticas. Mas quando um mercado se abre, ninguém quer ficar de fora, sobretudo quando a estimativa do mercado ilegal já possui valores dantescos. Resumindo: quem tem grana tá de olho – e também faz lobby político. Quem ainda está de fora dificilmente perderá esta oportunidade de ouro. Estamos falando aqui de pessoas que vão investir na indústria da cannabis – estes não seremos a maioria de nós. Os usuários de hoje não serão os cultivadores de amanhã, estes continuarão comprando sobre a lei do “menor custo-benefício”, como tem sido a vida desde a Revolução Industrial, no mínimo. Fora toda a gama de produtos, principalmente os farmacêuticos já tão adaptados à produção industrial em larguíssima escala e distribuição internacional. A “rede” já está pronta, só esperando pelo novo produto. Daí pra frente é “arrisque-se quem puder”.

Sobre o mercado canábico, as notícias mais animadoras quase sempre não são mais do que respostas óbvias. Estima-se um pequeno aumento da empregabilidade da população, o que é evidente pois o mercado já existe e as “vagas de empregos” já estão ocupadas, porém são informais – e criminosas. O que mudará, certamente, é o empregador. Pouco se fala em anistia aos condenados por “trabalharem ilegalmente” com cannabis. Ainda que a seja um negócio bilionário, gere renda e novas oportunidades, nos EUA – país que mais avançou e lucrou no sentido do beneficiamento e comércio de cannabis – ainda possui a maior população carcerária do planeta em números relativos e absolutos – em sua maioria afroamericanos, seguidos dos hispânicos. Grande parte deles graças a racializada política anti-drogas. Sem anistia, só restaria aos comerciantes ilegais de hoje trocarem de atividade, provavelmente para outra atividade criminosa. Afinal, o debate sobre a legalização não pode estar centralizado na “melhor lógica comercial”, como se o comércio por si só pudesse sinalizar grandes mudanças estruturais – tão estruturais como toda História que tangencia a proibição da cannabis.

Mas se isso parece apenas uma futurologia, essa perspectiva acaba de se tornar mais observável pois a “mão invisível” já pariu os primeiros bilionários maconhistas. Enquanto o rapper Jay-Z investe em fundos de apoio a negócios de cannabis da população afroamericana, quem tem ficado mais rico com isso não parece vir deste grupo. O mais ilustre deles também é o primeiro bilionário deste ramo, posto reconhecido pela Forbes em 2019, e se chama Boris Jordan. CEO e dono de 31% da “Curaleaf”, o norte-americano filho de mãe e pai russos não só é descendente de “czaristas” – pessoas que compunham a corte do Czar, o soberano do império – como também ajudou a desmontar a própria União Soviética, trabalhando na transição do governo socialista para um regime capitalista e participando da privatização de bens públicos no início dos anos 90, chegando a trabalhar para agência responsável por estas privatizações. Acredite, um homem desses tem mais com que se preocupar do que com o bem-estar geral da população. Prova disto é que apenas 7 anos depois do fim da URSS, a novíssima bolsa de valores da Rússia quebrou, trazendo graves consequências para o país. Inclusive, ele é acusado de fraudes financeiras – o que não é nenhuma novidade em se tratando dos bilionários, vide o recente caso dos proprietários das “Lojas Americanas” no Brasil.

Mais um a se meter no negócio da cannabis legalizada é o britânico Maximillian White. Mas que nome! Aos 17 anos assumiu o negócio da família, um pub, se tornando o primeiro britânico menor de idade com uma licença para vender álcool, o verdadeiro privilégio de ser “white”. Em 2020 começou a erguer a maior plantação de cannabis medicinal da Europa, em Portugal, um investimento bilionário, e ele mesmo relata que “enquanto tudo despencava durante a pandemia, os negócios com a cannabis cresceram mais de 60%”, e é essa a lógica: todo desastre vem acompanhado de uma oportunidade. Mas será que isso se aplica unicamente a indústria da cannabis? Durante a pandemia de 2020 a fortuna somada dos bilionários cresceu a mesma cifra de 60% em relação aos 14 anos anteriores. Destes, os 10 mais ricos, incluindo o Mr. Musk, duplicaram suas fortunas – o dado é de um relatório da Oxfam (Oxford Committee For Famine Reliefe / Comitê de Oxford para Alívio da Fome). A pandemia fez dos ricos mais ricos, seja em commodities cannábicas ou não. E vamos lembrar que a demanda por medicamentos psiquiátricos aumentou durante e após a pandemia, e a cannabis medicinal é a mais nova “onda” deste mercado.

A cannabis como commoditie tem perspectivas de encarecimento. O produto tem se valorizado o que claramente aponta para uma tendência regulatória que visará beneficiar quem já pode investir e lucrar com o setor, o que está longe da ampla oferta pública que poderia ter uma simples planta.

A nós, meros mortais, só nós resta a esperança de dias melhores e menos opressores. Imagina só, a maconha legalizada mas não poder fumar em paz…


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